„Sou muito esquerda para a polícia” – Leonel Radde

O policial civil, Leonel Radde, 40, é uma mistura difícil de encontrar no Brasil. È zen-budista, aikidoka e vegetariano. Mas sobre tudo, se define como anti-fascista.

Seus vídeos nos quais ele fala de política e critica duramente a direita o tornaram um dos policiais mais conhecidos do Brasil. No ano passado, ele foi eleito vereador pelo PT em Porto Alegre. Radde trabalhou como ator durante 15 anos, cursou História e Direito, e teve uma longa carreira na Polícia Civil.

Sr. Radde, nas eleições de 2020 você foi eleito vereador pelo PT em Porto Alegre. Como está sendo a experiência?

Para ser sincero, existe uma sensação de impotência. Em Porto Alegre tem uma maioria conservadora brutal e de certa forma intolerante. Portanto, não tem muitas possibilidades para mudar algo. Pode apresentar a melhor proposta e aquilo que está sendo apresentado pelo outro lado pode ser o maior absurdo, mas o resultado não vai diferir. O absurdo vai ganhar porque tem um acordo que existe entre os grupos no poder.

Como você avalia a atual situação da pandemia em Porto Alegre.

È muito difícil. Os hospitais já estão com mais de 100% dos leitos de UTI ocupados. É o resultado das decisões irresponsáveis do prefeito Sebastião Melo. Ele decidiu manter a cidade aberta. As aglomerações durante o Carnaval também tiveram um papel decisivo. Me parece que a opção que o Brasil em gtomou – não só aqui em Porto Alegre – é dizer que precisamos de consumidores para manter girando a economia em cima dos custos de vidas. È um cálculo cínico e típico de um governo com viés militares: vamos ter X baixas se fazermos aquilo ou aquilo. Agora boa parte disso poderia ter sido evitado se não tivéssemos um presidente negacionista. O Brasil já poderia ter as doses necessárias da vacina. Estaríamos em outro momento da pandemia. Todos sofrem agora, inclusive a economia, porque a reabertura está sendo atrasada cada vez mais.

Nos últimos anos muitos policiais entraram na política brasileira surfando na onda ultra-conservadora. Vc, por outro lado, é um policial declaradamente anti-fascista e da esquerda. Por que decidiu entrar na questão eleitoral?

Por uma necessidade de autopreservação. Em 2014 eu comecei a sofrer perseguições dentro da polícia civil porque eu tinha gravado um vídeo em apoio ao governador Tarso Genro do PT. Quando o vídeo viralizou, os delegados que apoiavam o Ivo Sartori do PMDB decidiram que eu estava causando um problema. Eu sempre estava vinculado a causas sociais. Minha mãe foi uma das fundadoras do PT no Rio Grande do Sul. Meu pai era diretor de teatro e brizolista. Quando eu fiz esse vídeo eu comecei a ser conhecido nas redes sócias. A polícia civil abriu uma sindicância contra mim por meu posicionamento. A segunda sindicância veio porque eu critiquei a primeira. E a terceira sindicância veio em 2015 quando fiz outra postagem reclamando que o governo Sartori estava prejudicando a polícia. Pra mim foi a gota d’água porque enviaram uma viatura para me prender. Entraram na minha delegacia como se eu fosse um criminoso. Eu entendi que eu ia levar uma atrás da outra se eu abrisse a minha boca. Ao final as sindicâncias foram todas arquivadas. Mas foi um aviso. Queriam prejudicar a minha carreira. Nessa época, eu decidi entrar na política e me candidatei duas vezes como vereador, mas não deu certo.

Por que finalmente foi eleito em 2020?

Eu reparei que a esquerda debate muito sobre segurança pública mas não tem representantes da segurança pública. Isso é grave porque a segurança é um ponto principal desde as eleições de 2016. Já existia esse discurso de que “bandido bom é bandido morto” e que só a direita sabe como trazer segurança. Era óbvio que a esquerda precisava de um representante que fosse capaz de falar sobre esse tema com base na própria experiência. Em geral, a esquerda precisa falar de uma forma diferente sobre segurança pública. Não adianta dizer que a polícia é truculenta e mata jovens negros da periferia. A própria periferia quer segurança. A esquerda perdeu a periferia. Acho que as pessoas repararam que faltava uma voz como a minha na esquerda. Outro ponto que foi importante: conseguimos montar um coletivo bem legal de pessoas diversas para minha campanha. Ampliou bastante o nosso alcance. Fiz a terceira campanha mais barata em Porto Alegre.

Você deve receber muitas reações desagradáveis por seu posicionamento politico. Como você lida com isso?

Como policial eu solucionei vários casos de racismo e consegui a condenação dos racistas, algo que não é muito fácil no nosso sistema judicial. È claro que fiz muitos inimigos. Quando esses grupos da extrema direita não conseguem mais te atingir nas redes sociais, começam a atacar institucionalmente. Por exemplo, aqui tem um deputado estadual da extrema direita, o Ruy Irigaray do PSL. Ele está envolvido num caso de rachadinhas e de manter um gabinete ilegal de ódio. O que ele fez: Foi no Ministério Público dizendo que eu, por ser anti-fascista, era um terrorista. Aí chegavam mensagens para mim de grupos de policiais dizendo que „a gente vai te matar”. Aprendi como lidar com isso, manter a calma e me defender.

Só recebe ataques da direita?

Tomara. Na internet, eu sou muito mais atacado pela extrema-esquerda. Parece que sou demais esquerda para a polícia e demais policial para a esquerda. Para eles, qualquer coisa que eu falo é racismo e fascismo. Tive problemas com vários youtubers e influencers que tiram todo do contexto e te acusam de ser isso ou aquilo. Distorcem as minhas palavras. Parece que alguns influencers da esquerda estão constantemente à procura de pessoas para acusá-las de aquilo ou aquilo. Vivem disso.

Você foi criticado pela esquerda por dizer que não é a polícia que mata os jovens negros no Brasil mas o tráfico de drogas. Você pode explicar o que queria dizer.

Eu sempre defendi a descriminalização das drogas porque a lei de drogas tem um viés racista. Também fiz uma pesquisa sobre vítimas de homicídios. Quem eram as vítimas de homicídios e quem eram os assassinos? Qual era a motivação do homicídio? Os dados demonstravam que mais de 70% dos homicídios em Porto Alegre tinham vinculações com disputas do tráfico de drogas. No Rio Grande do Sul 10% da população é autodeclarada negra. Mas 30% dos mortos e dos encarcerados são negros. Proporcionalmente morrem três vezes mais negros por homicidio. A maioria da motivação dos crimes é o tráfico de drogas. Eu fui atacado para falar sobre isso. Sim, é um fato que a nossa polícia é racista. È a polícia que mais mata no mundo e que mais morre no mundo. Mas a maioria das mortes na periferia não são causadas pela polícia mas pelo tráfico. Teve um youtuber brancoque me atacou ferozmente por dizer isso. Falou que era racisa. Tirou tudo do contexto. Os extremistas da esquerda usam as mesmas técnicas que os da direita. São pessoas intelectualmente desonestas .

Vc é filho de um diretor de teatro e de uma sindicalista. Cresceu num ambiente de esquerda. Atuou em peças e em comerciais na tevê quando er a jovem. Fez faculdade de história, de direito e também estudou direitos humanos. Em 2010, ingressou na polícia. É uma escolha bastante surpreendente considerando a sua trajetória e a má reputação da polícia brasileira. O que te atraiu nessa profissão?

Minha mãe disse uma vez que posso escolher qualquer profissão menos policial. Depois ela compreendeu a minha decisão. Eu entrei na questão policial por causa das artes marciais. Tenho a faixa preta em Aikido. Quando o meu professor começou a dar aulas para profissionais da brigada militar, eu auxiliava ele e começei me interessar por essa realidade do pessoal da segurança. Decidi me concursar para a polícia civil. Pensava naquilo como uma forma de agir sobre as questões da sociedade de uma forma direta: resolver crimes, dar uma resposta á sociedade e retirar os homicidas. Trabalhei em equipes e departamentos muito sérias com muitos policiais dedicados. A gente trouxe um benefício para a sociedade. Isso é o papel e o dever do policial como eu o entendo. Isso não deve ser uma questão partidária.

Quantos policiais existem que pensam como você mas estão com medo de se manifestar? Sobretudo a PM é notoriamente conhecida por atrair pessoas da direita e da extrema-direita.

Tem uma diferença considerável entre os diferentes policiais. A PM certamente é mais à direita. A Polícia Civil é menos. Mas até na PM existem muitos policiais que pensam diferente. Não são necessariamente da esquerda mas não concordam com o pensamento bolsonarista. Mas eles não se posicionam porque sabem que isso pode ter um preço alto. Os grupos mais intolerantes da polícia são muito barulhentos e muito violentos. Os caras da extrema-direita se manifestam sempre sem pudor. Então você acaba perdendo. Por exemplo, eu tinha feito a maior operação da polícia civil em 2019, prendemos mais de 25 criminosos. Mas quando saiu a lista de promoções – e eu tinha a pontuação certa para ser promovido – fui barrado por intervenção do governador Eduardo Leite. Foi por meu posicionamento político e democratico. Os policiais da direita não têm esse problema. È muito assustador que a policia está se vinculando cada vez mais ao governo Bolsonaro. A gente tem que batalhar para que a polícia fique sendo uma polícia de estado e não de um governo. E que ela seja uma polícia cidadã de fato. Por isso eu defendo a desmilitarização.

Mas o crime organizado no Brasil é tão poderoso e tão fortemente armado que você precisa de quase um exército para combater esses grupos criminosos?

Essa é a lógica deturpada que se tem sobre a desmilitarização. Com ela a polícia não vai perder a característica de ostensividade. A polícia vai continuar usando força. Essa polícia vai continuar sendo ostensiva, ela vai continuar usando farda, ela vai continuar usando armamento. E ela vai continuar fazendo as mesmas atividades. O que vai mudar é a questão da hierarquia e da formação. Tem que desvincular o exército da polícia. A polícia rodoviária federal já funciona fora da lógica militar. È uma polícia bem funcional e sem esses excessos de violência da PM. O grande problema é o militarismo da PM. Um policial militar é formado na base da humilhação e da subordinação. Ele acredita que ele é um Deus e o cidadão não é ninguém. Tem uma lógica de guerra. Os caras saem da academia pensando que precisam demonstrar que eles têm poder. E cometem abusos.

Vc está pensando em se candidatar ao nível estatal ou federal?

Eu acho que seria muito importante ter uma candidatura em 2022 de um policial de esquerda. A extrema direita vai ter um monte de policiais se candidatando. Um policial com uma pauta antifascista seria um contraponto. Eu poderia demonstrar que segurança pública não é hegemonia da direita. Mas é uma missão muito difícil porque a pauta da esquerda está muito virada para questões de identidade e isso se reflete nas candidaturas. Eu acredito que é importante, mas como branco e policial é não me encaixo facilmente nisso. Gostaria muito contribuir para que a esquerda tivesse um discurso sobre segurança pública baseado na realidade e experiência de quem realmente trabalha nessa área. Também voltaria para a polícia, mas a corporação não me perdoaria por meu posicionamento político. Não teria muitas possibilidades para subir.

Você também é zen-budista e um dos poucos vegetarianos gaúchos. Explica como essas escolhas ajudam você no seu trabalho, e no seu dia a dia?

Eu sou vegetariano faz 24 anos. Os meus tios sempre praticavam yoga, convidaram até monges indianos. Então desde cedo eu era muito ligado a essa questão. Aos 16 anos eu comecei a praticar vegetarianismo e pouco depois parei de beber álcool. Também comecei a praticar artes marciais japonesas. Elas tem uma conexão direta com o zen-budismo. E também tem uma conexão com a função policial porque o zen-budismo trabalha muito o autocontrole e auto-conhecimento. Isso é importante para ser policial. Por exemplo, eu participei de um curso sobre operações táticas. Esse curso é quase igual que aquele no filme „Tropa de Elite“. Você tem que aguentar muita pressão psicológica, passar por situações extremas, você é privado de sono e comida. Vc é humilhado. No meu curso eramos 125 inscritos e no final se formavam só 10. Eu era um deles. Teve muito gás, spray de pimenta, bomba, tiros, choques. É um treinamento psicologicamente muito exigente. Mas como operador tático você precisa de um alto nível de controle. O zen-budismo e as artes marciais tem me ajudado muito a manter esse equilíbrio. Hoje, eu uso meus conhecimento na política. Você tem que saber quando é melhor entrar com agressividade para não ser atropelado – e quando a agressividade te enfraquece. Tudo é um Yin e Yang.